quinta-feira, 14 de maio de 2009

O TROTE DA SOBREVIVENCIA

Antonio Roberto de Paula

Primeiro é o trote e depois o forte som do tampão da lixeira abrindo. Eles chegam por volta das 10 e meia da noite. No começo, a gente estranhava e botava a cara na janela para ver o que estava acontecendo. O horário é propicio, pois eles se antecipam aos madrugadores e aos caminhões de lixo da prefeitura.
E é quase sempre assim: a mãe, e os filhos, de nove e sete anos, talvez um pouco mais, descem da carroça puxada por uma égua cansada. Papelões tomam quase todo espaço da carroça. Devem ter feito uma formidável via-sacra para conseguir tanto papel. Esta deve ser uma das ultimas lixeiras para ser vistoriadas porque o pobre animal dá a impressão que não vai suportar nem mais uma folha. O peso da carga e a maratona trotando o asfalto o deixaram entregue.
O garoto maior joga quase todo o corpo no container para tirar o papelão e passa para o menor, que vai dobrando e entregando para sua mãe, que se encarrega de se ajeitar a pilha. Serviço encerrado, eles sobem na carroça e seguem lentamente na penumbra depois de mais um domino cumprido. Como trilha sonora, o sofrido trote.
Poderia dizer que a miséria desfila em frente a nossa porta enquanto fazemos ouvidos moucos e olhares oblíquos ou enveredar pelo vão da revolta por ver crianças na noite revirando lixo na busca do sustento. Poderia tentar ser poeta ou panfletário, pois as duas formas são necessárias para reforçar a indignação.
Há outra via: admirar a força de uma mulher e duas crianças. Eles sabem, dentro de uma complexidade que os coloca na parte mais fraca da corda, que é preciso ir a luta com as armas possíveis. Neste caso, as armas possíveis são uma égua, uma carroça e as centenas de lixeiras espalhadas na cidade. E se assim lutam é porque confiam que o futuro, mesmo incerto, distante, nebuloso, vai lhes dar ferramentas bem melhores.
Existe um ativo, vibrante e participativo que não compreendemos dentro deste mundo indigno formado por gente digna. Dias destes, depois do serviço terminado, um outro menino catador, desceu de sua carroça e se sentou no meio-fio para comer. Depois de umas garfadas, se levantou e pôs a marmita na boca do cavalo, que arrematou o restante.
Que gesto! Forte o bastante para que concluísse que esse foi o maior exemplo de amizade entre uma pessoa e um animal. Mas, só foi isso? Ou tudo isso? Deixando a tristeza e outros sentimentos recorrentes de lado, fico imaginando se não foi tão somente mais uma cena comum de parceria pela sobrevivência. O menino é quem sabe.

( Antonio Roberto de Paula )