quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Condicional

Quis nunca te perder
Tanto que demais
Via em tudo o céu
Fiz de tudo o cais
Dei-te pra ancorar
Doces deletérios

E quis ter os pés no chão
Tanto eu abri mão
Que hoje eu entendi
Sonho não se dá
É botão de flor
O sabor de fel
É de cortar.

Eu sei é um doce te amar
O amargo é querer-te pra mim
Do que eu preciso é lembrar, me ver
Antes de te ter e de ser teu, muito bem...

Quis nunca te ganhar
Tanto que forjei
Asas nos teus pés
Ondas pra levar
Deixo desvendar
Todos os mistérios.

Sei, tanto te soltei
Que você me quis
Em todo lugar
Lia em cada olhar
Quanta intenção
Eu vivia preso!

Eu sei, é um doce te amar
O amargo é querer-te pra mim.
Do que eu preciso é lembrar, me ver
Antes de te ter e de ser teu
O que eu queria, o que eu fazia, o que mais,
Que alguma coisa a gente tem que amar, mas o quê?
Não sei mais!

Os dias que eu me vejo só são dias
Que eu me encontro mais e mesmo assim
Eu sei tão bem: existe alguém pra me libertar!


Rodrigo Amarante

domingo, 24 de outubro de 2010

O colapso do Movimento Evangélico

Ricardo Gondim


Dois pastores paulistas se fantasiam de Fred e Barney. Isso mesmo, fantasiados de Flintstone, entre gracejos ridículos, acreditam que estão sendo "usados por Deus para salvar almas". Na rádio, um apóstolo ordena que tragam todos os defuntos daquele dia, pois ele sente que Deus o "ungiu para ressuscitar mortos".

Os jornais denunciam dois políticos de Minas Gerais, "eleitos por suas denominações para representar os interesses dos crentes", como suspeitos de assassinato. O rosário se alonga: oração para abençoar dinheiro de corrupção; prisão nos Estados Unidos por contrabando de dinheiro, flagrante de missionários por tráfico de armas; conivência de pastores cariocas com chefões da cocaína .

Fica claro para qualquer leigo: O movimento Evangélico brasileiro se esboroa. O processo de falência, agudo, causa vexame. Alguns já nem identificam os evangélicos como protestantes. As pilastras que alicerçaram o protestantismo vêm sendo sistematicamente abaladas pelo segmento conhecido como neopentecostal. Como um trator de esteiras, o neopentecostalismo cresce passa por cima da história, descarta tradições e liturgias e se reinventa dentro das lógicas do mercado. É um novo fenômeno religioso.


É possível, sim, separá-lo como uma nova tendência. Sobram razões para afirmar-se que o neopentecostalismo deixou de ser protestante ou até mesmo evangélico.É uma nova religião. Uma religião simplória na resposta aos problemas nacionais, supersticiosa na prática espiritual, obscurantista na concepção de mundo, imediatista nas promessas irreais e guetoizada em seu diálogo cultural.


Mas a influência do neopentecostalismo já transbordou para o "mainstream" prostestante. O neopentecostalismo fermentou as igrejas consideradas históricas. Elas também se vêem obrigadas a explicar quase dominicalmente se aderiram ou não aos conceito mágicos das preces. Recentemente, uma igreja batista tradicional promoveu uma "Maratona de Oração pela Salvação de Filhos Desviados".

Pentecostais clássicos, como a Assembléia de Deus, estão tão saturados pela teologia neopentecostal que pastores, inadvertidamente, repetem jargões e prometem que a vida de um verdadeiro crente fica protegida dentro de engrenagens de causa-e-efeito. Os "ungidos" afirmam que sabem fazer "fluir as bênçãos de Deus". É comum ouvir de pregadores pentecostais que vão ensinar a "oração que move o braço de Deus”.

O Movimento Evangélico implode. Sua implosão é visceral. Distanciou-se de dois alicerces cristãos básicos, graça e fé. Ao afastar-se destes dois alicerces fundamentais do cristianismo, permitiu que se abrisse essa fenda histórica com a tradição apostólica.

1. A teologia da Graça

Desde a Reforma, protestantes e católicos passaram a trabalhar a Graça como pedra de arranque de um novo cristianismo. O texto bíblico, “o justo viverá da fé”, acendeu o rastilho de pólvora que alterou a cosmovisão herdada da Idade Média. A Graça impulsionou o cristianismo para tempos mais leves. Foi a Graça que acabou com a lógica retributiva que mostrava Deus como um bedel a exigir penitência. Devido a Graça entendeu-se que a sua ira não precisa ser contida. O cristianismo medieval fora infectado por um paganismo pessimista e, por isso, sobravam espertalhões vendendo relíquias e objetos milagrosos que, segundo a pregação, “ garantiam salvação e abriam as janelas da bênção celestial”.


Lutero, um monge agostiniano, portanto católico, percebeu que o amor de Deus não podia ser provocado por rito, prece, pagamento ou penitência. Graça, para Lutero, significava a iniciativa de Deus, constante, unilateral e gratuita, de permanecer simpático com a humanidade. Lutero intuiu que Deus não permanecia de braços cruzados, cenho franzido, à espera de que homens e mulheres o motivassem a amar. O monge escancarou: as indulgências eram um embuste. Assim, Lutero solapava o poder da igreja que se autoproclamava gerente dos favores divinos.


Passados tantos séculos, o movimento neopentecostal, responsável pelas maiores fatias de crescimento entre evangélicos, abandonou a pregação da Graça. (É preciso ressaltar, de passagem, que o conceito da Graça pode até constar em compêndios teológicos, mas não significa quase nada no dia-a-dia dos sujeitos religiosos).


Os neopentecostais retrocederam ao catolicismo medieval. É pre-moderna a religiosidade que estimula valer-se de amuletos “como ponto de contato para a fé”; fazerem-se votos financeiros para “abrir as portras do céu”; “pagar o preço” para alcançar as promessas de Deus. Desse modo, a magia espiritual da Idade Média se disfarçou de piedade. A prática da maioria dos crentes hoje se concentra em aprender a controlar o mundo sobrenatural. Qual o objetivo? Alcançar prosperidade ou resolver problemas existenciais.


2. A compreensão da Fé

“A Piedade Pervertida” (Grapho Editores) de Ricardo Quadros Gouvêa é um trabalho primoroso que explica a influência do fundamentalismo entre evangélicos.

“O louvorzão, assim como as vigílias e as reuniões de oração, e até mesmo o mais simples culto de domingo, muitas vezes não passam de um tipo de superstição que beira a feitiçaria, uma vez que ele é realizado com o intuito de ‘forçar’ uma ação benévola da parte de Deus, como se o culto e o louvor fossem um ‘sacrifício’, como os antigos sacrifícios pagãos. Neste caso, não temos mais liturgias, mas sim teurgias, nas quais procura-se manipular o poder de Deus” (p.28).

Ora, enquanto fé permanecer como uma “alavanca que move os céus”, as liturgias continuarão centradas na capacidade de tornar a oração mais eficaz. Antes dos neopentecostais, o Movimento Evangélico já se distanciara dos Místicos históricos que praticavam a oração com um exercício de contemplação e não como ferramenta de como tornar Deus mais útil.

Fé não é uma força que se projeta na direção do Eterno. Fé não desata os nós que impedem bênçãos. Fé é coragem de enfrentar a vida sem qualquer favor especial. Fé é confiança de que os valores de Cristo são suficientes no enfrentamento das contingências existenciais. Fé aposta no seguimento de Cristo; seguir a Cristo é um projeto de vida fascinante.

O neopentecostalismo ganhou visibilidade midiática, alastrou-se nas camadas populares e se tornou um movimento de massa. Por mais que os evangélicos conservadores não admitam, o neopentecostalismo passou a ser matriz de uma nova maneira de conceber as relações com o Divino.

A alternativa para o rolo compressor do neopentecostalismo só acontecerá quando houver coragem de romper com dogmatismos e com os anseios de resolver os problemas da vida pela magia.

O caminho parece longo, mas uma tênue luz já desponta no horizonte, e isso é animador.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Que verdade?

Escolhe pra mim? Decida por mim?
Por que tenho escolher?
Por que não posso optar por não escolher?
Não confio tanto em minhas “verdades”!
Será que aprendi bem a lição?
Não é fácil acreditar em verdades solitárias. É mais fácil confiar no que todo mundo diz.
Ainda que o barco afunde, é melhor que uma canoa. Olhando assim, parece melhor morrer junto do que viver sozinho. Não estou falando de solidão, estou falando de verdades e das verdades que todo mundo diz. Ainda que a voz do povo não seja realmente a voz de Deus, se não acredito nessas verdades, sou realmente um herege.
Às vezes sou tentado a crer que não existem verdades (ainda que isso também não seja verdade), e que existam apenas maiorias e minorias, a voz da multidão e o sussurro tímido e solitário. Apesar do calor e conforto da multidão, tenho compaixão pelo solitário.
Outras vezes me sinto eu mesmo o solitário e desamparado.
São poucos os que se preocupam com os solitários.
A multidão enfurecida passa depressa e acaba esmagando sem piedade, sempre em nome da verdade, e segue sempre adiante em direção a não sei onde.



Heber de Paula
20 de agosto de 2009

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

dias difíceis

O que está acontecendo comigo? Sinto-me tão fraco agora? O que faço?
Esse furacão vem devastando construções erguidas há anos.
Sem nenhuma piedade vem destruindo estruturas outrora tão sólidas quanto às montanhas. O pior disso tudo é que minha vida está entrelaçada nessas estruturas, nestas construções. Se elas caem, eu não posso permanecer firme, por isso, me sinto desajustado, vulnerável, instável, perdido, confuso, indefinido... Quem poderia me ajudar nesta situação?
Onde está minha casa, onde eu guardava tudo o que precisava? Procuro o que preciso e não encontro. Onde está o meu quarto onde podia deitar e descansar, olhar o céu pela janela. Não há céu nem janela mais. Não há mais casa, nem quintal, não há nada nem lugar onde eu possa me sentir em casa. Incrível, nunca me senti assim. Em lugar nenhum, é justamente assim que me sinto, em lugar nenhum.
Pensando bem, é pior que isso. Sinto-me em terreno inimigo. Esse lugar não é nada amistoso. Meus companheiros são abatidos diariamente, volta e meia tenho que carregar um ferido quase morto, nas costas, ate que ele chegue onde possa ser tratado.
Os piores inimigos usam os mesmos uniformes que eu, assim fica difícil. Também sou alvejado o tempo todo, a dor é quase insuportável, me sinto muito fraco.
Sinto-me em país estrangeiro. Parece que não falo a mesma língua que eles. Também não quero falar essa língua nunca, não quero aprender por mais fácil que pareça. Não entendem os que fazem, entendem sim, os que falam como se faz, os que falam que fazem, os que falam, falam e falam. Essa língua é falsa, pois não reflete a realidade.
Sinto-me no Ártico. É tão frio aqui, ninguém sente nada. A indiferença é o sentimento mais comum. Não sentem quando pisam, estão dormentes e endurecidos pelo frio.
Sinto-me estranho, longe, mal, só, enfermo, cansado... Sem esperança...
20/09/2010 Heber de Paula Pereira

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Onde foi parar o lugar que eu sentia?

Heber de Paula Pereira
Sinto saudades do tempo em que morava com Deus, quando acordava ele vinha ate a minha cama, sorria para mim e dizia o quanto me amava.
Sinto saudades de suas mãos em minhas mãos me erguendo da cama e me abraçando. Seu cheiro é único e inconfundível, não há nada semelhante no mundo. O carinho com que tocava meu rosto, o jeito de olhar e ver toda a minha admiração, enquanto me olhava não conseguia pensar em nada. Seus olhos transbordavam amor e compaixão como se ali fosse a fonte disso tudo.
Ah, aquelas manhãs na casa de Deus jamais esquecerei, como sinto falta daquele lugar agradável, onde o tempo não existe, onde nunca estou só.
Onde fica esse lugar? Onde fica pra que eu volte correndo pra lá e nunca mais me afaste? A saudade é um buraco no meu peito que sempre dói. Sinto-me tão longe agora, e tão só também. Aquela casa tão colorida, tão cheirosa e cheia de abraços. Preciso voltar correndo. Mas uma coisa me impede. Pra morar lá tenho que ser criança. Tenho que deixar pra traz as tolices de adulto. Tenho que esquecer tudo que sei e voltar a brincar. Brincar no chão, na chuva, na terra. Brincar com carrinhos e bola, subir em árvores, e sorrir no embalo do balanço, brincar como se não existisse amanhã, como se hoje fosse o único dia. Tenho que deitar no chão da casa e ficar olhando pra cima ouvindo a musica que está tocando. Pra morar nesse lugar tenho que deixar de fazer planos, de me preocupar com o que vou comer, vestir...
Onde está? Onde foi parar o lugar que eu sentia?

quarta-feira, 19 de maio de 2010

É Proibido Pensar
João Alexandre

Procuro alguém pra resolver meu problema
Pois não consigo me encaixar neste esquema
São sempre variações do mesmo tema
Meras repetições

A extravagâncias vem de todos os lados
E faz chover profetas apaixonados
Morrendo em pé rompendo a fé dos cansados
Com suas canções

Estar de bem com vida é muito mais que renascer
Deus já me deu sua palavra
E é por ela que ainda guio o meu viver

Reconstruindo o que Jesus derrubou
Re-costurando o véu que a cruz já rasgou
Ressuscitando a lei pisando na graça
Negociando com Deus

No show da fé milagre é tão natural
Que até pregar com a mesma voz é normal
Nesse evangeliquês universal
Se apossando do céus

Estão distantes do trono, caçadores de deus
Ao som de um shofar
E mais um ídolo importado dita as regras
Pra nos escravizar.

É proibido pensar.

domingo, 28 de março de 2010

O filão religioso

Ricardo Gondim

As Casas Bahia disputam o mesmo mercado que a Magazine Luiza. As duas lojas se engalfinham para abocanhar o filão dos eletrodomésticos, guarda-roupas de madeira aglomerada e camas de esponja fina. Buscam conquistar assalariados, serralheiros, aposentados e garis. Em seus comercias, o preço da geladeira aparece em caracteres pequenos, enquanto o valor da prestação explode gigante na tela da televisão. A patuléia calcula. Não importa o número de meses, se couber no orçamento, uma das duas, Bahia ou Luiza, fecha o negócio - o juro embutido deve ser um dos maiores do mundo.
Toda noite, entre oito e dez horas, a mesma lengalenga se repete nos programas evangélicos. Pelo menos quatro “ministérios” concorrem em outro mercado: o religioso. Todos caçam clientes que sustentem, em ordem de prioridade, os empreendimentos expansionistas, as ilusões messiânicas e o estilo de vida nababesco dos líderes. Assim, cada programa oferece milagres e todos calçam suas promessas com testemunhos de gente que jura ter sido brindada pelo divino. Deus lhes teria abençoado com uma vida sem sufoco. Infelizmente, o preço do produto religioso nunca é explicitado. Alardeia-se apenas a espetacular maravilha.
Considerando que a rádio também divulga prodígios a granel, como um cliente religioso pode optar? Para preferir uma igreja, precisa distinguir sobre qual missionário, apóstolo, pastor ou evangelista, Deus apontou o dedo. E se tiver uma filha com leucemia aguda, não pode errar. Ao apelar para uma igreja com pouco poder, perde a filha.
O correto seria freqüentar todas. Mas como? Em nenhuma dessas igrejas televisivas o milagre é gratuito ou instantâneo. As letrinhas, que não aparecem na parte de baixo do vídeo, afirmariam que, por mais “ungido” que for o missionário, um monte de exigência vem embutida na promessa da bênção. É preciso ser constante nos cultos por várias semanas, contribuir financeiramente para que a obra de Deus continue e, ainda, manter-se corretíssimo. Um deslize mínimo impede o Todo Poderoso de operar; qualquer dúvida é considerada uma falta de fé, que mata a possibilidade do milagre.
Lojas de eletrodoméstico vendem eletrodoméstico, óbvio. Igrejas evangélicas comercializam a idéia de que agenciam o favor divino com exclusividade. E por esse serviço, cobram caro, muito caro. Afinal de contas, um produto celestial não pode ser considerado de quarta categoria. A "Brastemp" espiritual que os teleevangelistas oferecem vem do céu.
O acesso ao milagre se complica, porque todos mercadejam o mesmo produto. Os critérios de escolha se reduzem a prazo de entrega, conforto e garantia.
Opa, quase esqueci! As lojas, em conformidade com o Código do Consumidor, são obrigadas a dar garantia, mas as igrejas evangélicas não dão garantia alguma. O cliente nunca tem razão. Quando a filha morrer de leucemia, o pai, além de enlutado, será responsabilizado pela perda. Vai ter que escutar que a menina morreu porque ele “deu brecha” para o diabo, não foi fiel ou não teve fé.
Mercadologicamente, Casas Bahia e Magazine Luiza estão bem à frente das igrejas. Melhor assim, geladeira nova é bem mais útil do que a ilusão do milagre.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Meu compromisso com a vida

Ricardo Gondim


Olho para o passado com lascas de nostalgia e pontas de melancolia. Caminhos que nunca trilhei hoje parecem bem mais fáceis. Amores que exigiram coragem voltam a me seduzir para me deixar ainda mais triste. Aventuras que nasceram de narcisismos e falsas onipotências reclamam explicações; como justificar tanto delírio? Não, não pretendo remontar passado. Desisto de qualquer tentativa de ressuscitar o que jaz sob o lajeado da decepção.


Para refazer meu compromisso com a vida, abandono o rigor de um humanismo idolátrico. Não idealizo as iniciativas ideológicas. Sei que toda instituição convive com o germe de sua própria inutilidade. Também não me prostro no altar do niilismo; descreio da capacidade humana de erguer-se pelos próprios cadarços. Meu existencialismo é frágil, carregado de suspeita. Minha religião, cheia de decepção. Minha ideologia agoniza debaixo dos escombros da modernidade.

Para refazer meu compromisso com a vida, largo na beira da calçada as metas-narrativas. Desconfio dos projetos globais. Incoerência entre discurso e prática me desesperam. A incapacidade de vertebrar o que acredito de coração me enoja. Criei cismas. Rio por dentro; é meu jeito de sobreviver aos ufanismos que tanto me irritavam no passado. Sei que preciso aniquilar os fantasmas que me deixaram com a sensação de ser um deus.

Para refazer meu compromisso com a vida, desisto de tentar levar a ferro e a fogo qualquer coisa. Erros me fizeram bem. Boas ações me arruinaram. Amigos me entristeceram. Desconhecidos me acolheram. Quando planejei, empaquei. Por outro lado, inesperadamente a vida deu certo sem planejamento. Sofri também com pecados. Paguei um alto preço por ser indolente. Mas, incrível, quando deixei para o dia seguinte o que deveria fazer hoje, foi bom.

Para refazer meu compromisso com a vida, quero ser leve como a pluma que escapou da asa do cisne, denso como o ruço que cobre a madrugada, escuro como a noite tropical sem lua, e transparente como o mar do Mediterrâneo. Hei de aprender a não discursar. Almejo ser mais enfático mas só em ternura; mais brando em afirmações. Pretendo rearrumar minha oratória. Quero voltar a olhar para o nada, como as crianças; a entrecortar frases com longas pausas, como os monges; a ritualizar os instantes, como os namorados.

Para refazer meu compromisso com a vida, espero envelhecer sem casmurrice. Acolher as doidices dos jovens, lembrando de como as minhas faziam sentido. Celebrar cada manhã como uma ressurreição. Aguardar o pôr-do-sol como uma grávida anseia pelo primeiro choro do filho. Plácido como um lago entre duas montanhas, espero encarar a morte. E que não reste nenhuma nesga de frustração em minha alma. E que eu descanse no sábado final com um sorriso maroto, sorriso de quem foi embora dizendo: valeu viver.