domingo, 21 de dezembro de 2008

Os estatutos do homem

Os Estatutos do Homem (Ato Institucional Permanente)
Thiago de mello

Artigo I Fica decretado que agora vale a verdade. agora vale a vida, e de mãos dadas, marcharemos todos pela vida verdadeira.
Artigo II Fica decretado que todos os dias da semana, inclusive as terças-feiras mais cinzentas, têm direito a converter-se em manhãs de domingo.
Artigo III Fica decretado que, a partir deste instante, haverá girassóis em todas as janelas, que os girassóis terão direito a abrir-se dentro da sombra; e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro, abertas para o verde onde cresce a esperança.
Artigo IV Fica decretado que o homem não precisará nunca mais duvidar do homem. Que o homem confiará no homem como a palmeira confia no vento, como o vento confia no ar, como o ar confia no campo azul do céu. Parágrafo único: O homem, confiará no homem como um menino confia em outro menino.
Artigo V Fica decretado que os homens estão livres do jugo da mentira. Nunca mais será preciso usar a couraça do silêncio nem a armadura de palavras. O homem se sentará à mesa com seu olhar limpo porque a verdade passará a ser servida antes da sobremesa.
Artigo VI Fica estabelecida, durante dez séculos, a prática sonhada pelo profeta Isaías, e o lobo e o cordeiro pastarão juntos e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.
Artigo VII Por decreto irrevogável fica estabelecido o reinado permanente da justiça e da claridade, e a alegria será uma bandeira generosa para sempre desfraldada na alma do povo.
Artigo VIII Fica decretado que a maior dor sempre foi e será sempre não poder dar-se amor a quem se ama e saber que é a água que dá à planta o milagre da flor.
Artigo IX Fica permitido que o pão de cada dia tenha no homem o sinal de seu suor. Mas que sobretudo tenha sempre o quente sabor da ternura.
Artigo X Fica permitido a qualquer pessoa, qualquer hora da vida, uso do traje branco.
Artigo XI Fica decretado, por definição, que o homem é um animal que ama e que por isso é belo, muito mais belo que a estrela da manhã.
Artigo XII Decreta-se que nada será obrigado nem proibido, tudo será permitido, inclusive brincar com os rinocerontes e caminhar pelas tardes com uma imensa begônia na lapela. Parágrafo único: Só uma coisa fica proibida: amar sem amor.
Artigo XIII Fica decretado que o dinheiro não poderá nunca mais comprar o sol das manhãs vindouras. Expulso do grande baú do medo, o dinheiro se transformará em uma espada fraternal para defender o direito de cantar e a festa do dia que chegou.
Artigo Final. Fica proibido o uso da palavra liberdade, a qual será suprimida dos dicionários e do pântano enganoso das bocas. A partir deste instante a liberdade será algo vivo e transparente como um fogo ou um rio, e a sua morada será sempre o coração do homem.

Santiago do Chile, abril de 1964

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

A noite e a Graça

Heber de Paula P.

Já é noite, o que eu faço acordado?
O céu lá fora sorri para mim,
Mas eu aqui dentro pareço trancado,
Ou meio perdido num universo sem fim.
As estrelinhas parecem entender
E a lua também parece escutar,
O que nas entrelinhas eu quero dizer
E no silencio da noite eu quero buscar.
Noite, noite, por que me fascinas tanto?
Serão as estrelas com brilho dileto?
Ou a lua formosa, no meio ou no canto,
De um céu que às vezes tem nuvens de branco,
Carregadas eu sei, de afago e afeto,
Com tanto carinho chega bem perto,
E derrama quietinha, um pouco de lagrimas,
E a cada gotinha é só uma pagina,
De um amor que é infinito,
De um amor que é dádiva,
E essas gotinhas se tornaram em sangue
Pra mostrar esse amor que a todos abrange
E é mais uma prova de amor e de graça
Pois é minha e sua essa nuvem que passa,
E de todos os homens, justo ou perverso,
E por cada um deles eu clamo e peço,
Que não demorem pra alcançar
O dia eterno, o sol da justiça.




Heber de Paula
16 de junho de 2005

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Um novo credo

Frei Betto

Creio no Deus desaprisionado do Vaticano e de todas a religiões existentes e por existir. Deus que precede todos os batismos, pré-existe aos sacramentos e desborda de todas as doutrinas religiosas. Livre dos teólogos, derrama-se graciosamente no coração de todos, crentes e ateus, bons e maus, dos que se julgam salvos e dos que se crêem filhos da perdição, e dos que são indiferentes aos abismos misteriosos do pós-morte.
Creio no Deus que não tem religião, criador do Universo, doador da vida e da fé, presente em plenitude na natureza e nos seres humanos. Deus ourives em cada ínfimo elo das partículas elementares, da requintada arquitetura do cérebro humano ao sofisticado entrelaçamento do trio de quarks.
Creio no Deus que se faz sacramento em tudo que aproxima, atrai, enlaça, abraça e une - o amor. Todo amor é Deus e Deus é o real. Em se tratando de Deus, bem diz Rumî, não é o sedento que busca a água, é a água que busca o sedento. Basta manifestar sede e a água jorra.
Creio no Deus que se faz refração na história humana e resgata todas as vítimas de todo poder capaz de fazer o outro sofrer. Creio em teofanias permanentes e no espelho da alma que me faz ver um Outro que não sou eu. Creio no Deus que, como o calor do sol, sinto na pele, sem no entanto conseguir fitar ou agarrar o astro que me aquece.
Creio no Deus da fé de Jesus, Deus que se aninha no ventre vazio da mendiga e se deita na rede para descansar dos desmandos do mundo. Deus da Arca de Noé, dos cavalos de fogo de Elias, da baleia de Jonas. Deus que extrapola a nossa fé, discorda de nossos juízos e ri de nossas pretensões; enfada-se com nossos sermões moralistas e diverte-se quando o nosso destempero profere blasfêmias.
Creio no Deus que, na minha infância, plantou uma jabuticabeira em cada estrela e, na juventude, enciumou-se quando me viu beijar a primeira namorada. Deus festeiro e seresteiro, ele que criou a lua para enfeitar as noites de deleite e as auroras para emoldurar a sinfonia passarinha dos amanheceres.
Creio no Deus dos maníacos depressivos, das obsessões psicóticas, da esquizofrenia alucinada. Deus da arte que desnuda o real e faz a beleza resplandecer prenhe de densidade espiritual. Deus bailarino que, na ponta dos pés, entra em silêncio no palco do coração e, soada a música, arrebata-nos à saciedade.
Creio no Deus do estupor de Maria, da trilha laboral das formigas e do bocejo sideral dos buracos negros. Deus despojado, montado num jumento, sem pedra onde recostar a cabeça, aterrorizado pela própria fraqueza.
Creio no Deus que se esconde no avesso da razão atéia, observa o empenho dos cientistas em decifrar-lhe os jogos, encanta-se com a liturgia amorosa de corpos excretando sumos a embriagar espíritos.
Creio no Deus intangível ao ódio mais cruel, às diatribes explosivas, ao hediondo coração daqueles que se nutrem com a morte alheia. Misericordioso, Deus se agacha à nossa pequenez, suplica por um cafuné e pede colo, exausto frente à profusão de estultices humanas.
Creio sobretudo que Deus crê em mim, em cada um de nós, em todos os seres gerados pelo mistério abissal de três pessoas enlaçadas pelo amor e cuja suficiência desbordou nessa Criação sustentada, em todo o seu esplendor, pelo frágil fio de nosso ato de fé.

Frei Betto é escritor, autor de "A Obra do Artista - uma visão holística do Universo" (Ática), entre outros livros.

domingo, 14 de dezembro de 2008

Quero voltar a ser criança...

Já tive uma vida comum, pai, mãe, família. Acordava cedo e sabia que veria minha mãe no café da manha. Era a primeira pessoa que via todos os dias. Não sabia que isso fazia tanta falta, nem tanta diferença. Meus irmãos, ainda pequenos eram mais presentes. O mundo parecia tão pequeno e tão imenso pra mim, era o mundo encantado onde todas as coisas eram possíveis. Eu dormia e acordava eternamente criança, os dias pareciam iguais, exceto no meu aniversario e aos domingos. Eu não conhecia nada, não sabia muita coisa e era muito feliz porque sabia tudo. Como eu adorava meu mundo. Lá, não existe tempo, nem espaço, nem memória nem lembranças...E nada disso faz falta. Mas agora que cresci, não sei ainda como viver nesse mundão tão pequeno, vivo esbarrando nas pessoas, no tempo, nos compromissos, nas preocupações, nos preconceitos, nas desigualdades, nas indiferenças, enganos e decepções, sonhos e frustrações, esperanças e perseverança. Esse novo mundo é áspero. Não há mais paredes de algodão, nem tapetes no chão. É tudo muito frio e doloroso como o vento gelado nas manhãs de inverno, nem mesmo o sol alivia o desconforto. Por que o mundo é tão ríspido? Porque não posso ficar embaixo do cobertor e não sentir frio?
Hoje tenho de conviver com duvidas e incertezas que me consomem diariamente, não aprendi a lidar com esses sentimentos ainda. Talvez seja melhor aceitá-los somente.
Quero voltar ao tempo de criança, ao tempo que não passa, ao tempo em que só há sorrisos, o dor passa tão rápido quanto a noite que nem vejo passar, com um beijinho sara rapidinho.
Quero de novo o tempo em que não há mentiras nem teatro, quero sair do palco um pouco e voltar à vida real. Ela é mais simples e verdadeira, ninguém usa máscaras. O choro é de verdade, o amor, nem se fala...






29 de maio de 2008

Heber de Paula P.

sábado, 13 de dezembro de 2008

Casas e Jardins

Havia um jardim imenso e florido. Flores de todas as espécies e perfumes, cores e tamanhos...
Eu fiquei perdido e encantado ali no meio, não sabia o que fazer. Sorria sem parar e olhava meio bobo, sem acreditar, sem acreditar que fosse real. Seria mais um sonho descabido ou só minha imaginação livre e sem limites? Naquela hora isso não importava, comecei a caminhar sem rumo e sem destino, queria conhecer todas as flores do jardim, sentir todos os perfumes. Queria gostar de todas e me encantar com cada uma delas, por isso saí numa busca desesperada pelo jardim. Tentei olhar para todas as flores, parecia até que o mundo estava para acabar, pois as experiências não duravam, eu corria achando que assim aumentaria as chances de encontrar o que procurava, sem saber que não é assim que acontece. Não se pode conhecer uma flor apenas olhando rápido e de longe, muito menos sentir o seu perfume. Todas as flores foram feitas para que cada um se encante com elas. Não existem flores sem beleza e sem perfume, se assim fosse, deixariam de serem flores. Eu não sabia disso e continuava a correr pelo jardim.
Corria tanto que até caí. Bendita queda que me abriu os olhos. Pude assim ver bem de perto uma linda flor que, se eu passasse correndo, provavelmente não a veria tão bem, não enxergaria os detalhes que só bem de pertinho, deitado ao seu lado e sem pressa consegui notar. Olhei suas cores, suas folhas, e como elas dançavam com a melodia dos ventos, parecia tão livre e tão à-vontade naquela dança que fiquei paralisado e não pude desviar os olhos. Feliz foi à hora em que caí, caí tão perto que pude sentir seu perfume. Seu cheiro me fez respirar fundo várias vezes, até quase perder o fôlego, não queria parar de sentir aquele cheiro. Foram mágicos aqueles momentos. Uma brisa, uma musica, uma dança e o perfume. Queria que fossem eternos aqueles momentos, queria você sempre perto de mim, por um impulso quase arranquei você de lá, que loucura! Foi difícil ir embora. Lutei contra mim mesmo para deixá-la. Meu desejo era levá-la comigo e naquela agonia, naquele desconforto, acordei. Acordei e olhei ao meu lado. Vi a flor mais linda do jardim, uma atrevida lágrima rolou em meu rosto, acompanhada de um sorriso franco. Senti mais uma vez o seu perfume, olhei suas cores e o brilho do seu rosto enquanto dormia e dançava no silêncio da manha. Senti-me a pessoa mais feliz desse mundo real, onde nos alimentamos de sonhos e imaginação. Hoje não corro mais, nem ligo para o tempo, assim posso ouvir a melodia infinita até o fim, acompanhar a dança o tempo todo, sem querer ir para casa. Quero morar onde a vida acontece, não em casas que mais me aprisionam, quero morar nos jardins onde a musica não para, onde sou livre para correr e cair, encontrar a qualquer hora um momento mágico e que me deixe extasiado e bobo, onde não tenho medo de parecer ridículo por rir de mim mesmo. Nos jardins posso encontrar e me surpreender todas as manhãs, encontrar novos ares e me surpreender com a chuva e o sol que molha minhas roupas e depois elas secam. Isso me faz sentir vivo, e livre... Livre para olhar e admirar tudo no jardim, livre para parar sem pressa e ouvir as musicas que tocam sem parar, a trilha sonora da vida, livre para sentir os perfumes que existem no jardim, sentir seu perfume... Não quero mais ir para casa, não quero casa, quero jardins, as casas são frias e fechadas, nos jardins há sol e não há paredes, nem o céu é o limite, nele há sonhos também, há cores e cheiros, há nuvens... Há vida... Multiformes vidas...


Heber de Paula